quinta-feira, 28 de julho de 2011
NAVAL, AMIGO INESQUECÍVEL
É controversa sua idade na terra. Tenho certeza que foram mais de 100 anos. No entender de certos filósofos indianos, cursava a 7ª reencarnação. Estava se preparando para o vestibular do Nirvana. Sempre místico. Em muitas revelações, fiquei com a impressão que tinha suas origens no Egito: fora mestre construtor de pirâmides. A exemplo de outros gênios incorporava espíritos com muita facilidade: senão como era possível explodir numa tela, com alguns segundos, um perfeito retrato de Jesus Cristo, profundo e messiânico, resultado de rápidos traços do seu bastão de carvão tinta. Merecia fazer parte do Livro dos Recordes.
Alcides Santos Coelho, o popular Naval, no decurso de uma curta e intensa convivência, passou-me profundos e sábios ensinamentos. Já nos seus últimos dias terrenos, visitei-o algumas vezes no hospital, sob os cuidados firmes e fraternos, do seu filho querido, denominado por ele de Jupa. Vibrava ao contar que formara dois filhos em brilhantes médicos: A Jussara em pediatria e o Jupa em ginecologia. Tive a alegria de comparecer à missa de formatura do Dr. Juparanã - o Jupa do Naval. Com a Jussara mantive contatos mais amiúdes, pois estava sempre preocupada com as andanças do pai.
No hospital, solícito com as enfermeiras que cuidava dele com muito carinho, fazíamos planos selecionando várias coisas que deveríamos fazer: 1) estava muito preocupado com o acervo de suas obras, depositadas no seu atelier na Klabin; 2) falava dos projetos da Ana Davis que pretendia fazer uma grande exposição das suas obras no Museu de Arte Moderna; 3) em concluir com o Jornalista José Carlos Rego, seu amigo, as obras que preparara para o Museu do Carnaval e, para colaborar com as suas preocupações, acrescentei-lhe a tarefa de, aproveitar aquele período de restabelecimento hospitalar, para registrar a história da sua vida num gravador.
Tanto o José Carlos Rego, a Marcia Nunes que nos acompanhara e eu, defendíamos a tese de que a trajetória do Naval, desde sua infância, seus traços, caminhos, vivências e superações de limites, poderia constituir uma saga exemplar para outras crianças que precisam de líderes como espelho. Combinamos, entre nós, que cada um faria uma parte. O José Carlos Rego, por sua experiência jornalística, consolidaria os depoimentos de todos nós e de outros que pudéssemos conseguir, enfim compondo o desejado documento histórico sobre a vida do Naval. Fiquei encarregado de encaminhar através do Jupa, um pequeno gravador para que Naval registrasse seu depoimento.
Era novamente uma nova vida. Como diz Chico Xavier: A vida é esperança, perseverança e disciplina, temos que ter sonhos e projetos. Cumpri o que prometi.
Dessa forma passo a relatar as minhas lembranças, tal como a Bíblia, sem critério cronológico. As recordações estão ligadas à pessoas, a locais, a insights, a ensinamentos e, principalmente, a estórias interessantes.
Meu depoimento exclue a biografia do Naval, porque deverá ser muito difundida em outros livros, só abordarei acontecimentos sensíveis, fraternos e espirituais.
Na verdade, a minha convivência com o Naval foi uma parceria fraternal, confundíamos a relação de pai-filho ou filho-pai ou ambas, dependendo de quem assumisse a liderança do conselho, do ensinamento da parábola.
Soube, por ele, que o Jupa, seu filho querido, tinha uma ponta de ciúmes de mim, pois exemplificava que se eu o chamasse, ele sem rodeios, imediatamente me atendia. Era verdade, gostávamos de estar juntos, pois alguma coisa acontece .
Invariavelmente, almoçávamos aos sábados e domingos, formando um grupo seleto de amigos e companheiros permanentes.
Foram mais de 20 anos de encontros, desencontros, papos, flagrantes, bebidas, boêmia, lugares e, muito importante, muitas pessoas.
O Naval preocupava-se em apresentar-me pessoas importantes que ele conhecia ou que fazia parte do seu meio artístico, e eu, por minha vez, trocava a mesma figurinha, convidando-o para participar de reuniões importantes fora do seu metier. Das pessoas que me apresentou, guardo com muito carinho o Jornalista José Carlos Rego que, a meu ver, exerceu um papel importante na divulgação do artista Naval. Entre nós o Naval continua vivo, por sua história, por sua obra e por seu exemplo.
Durante essas duas décadas, ele produziu para mim mais de 500 obras.
Ainda guardo no meu meio familiar algumas 50. As outras estão espalhadas no Brasil inteiro, fruto de presentes a amigos e conhecidos. Até em Tucuman, Argentina, encontrei por acaso, obra do Naval. Vários amigos, como o Jabour, o Bento Freire, o Hugo Rezende, o José Casali, o Eurico Furtado, entre outros, se tornaram seus marchands como dizia o Naval.
No Carnaval de 99 a Telerj prestou-lhe uma simpática homenagem póstuma, retratando em seus cartões telefônicos, quatro belíssimas obras do Naval, sendo 2 do meu acervo (Os Cuiqueiros e o Frevo) e 2 do José Carlos Rego (As Baianas e a Porta-bandeira).
Essa homenagem foi uma iniciativa da sua filha Jussara que dessa forma, em uma só penada, multiplicou a divulgação das obras do Naval em mais de 500.000 cartões telefônicos, perpetuando a sua interação com o povo. Por essas e outras é que se diz: A sua vida é a sua obra.
O COMEÇO DA HISTÓRIA – PARDELLAS
Recordo-me da primeira vez que encontrei o Naval. Um grupo de executivos boêmios, lá pelos idos de 1974, frequentávamos o Pardellas, preenchendo o intervalo das 17 as 20, ainda a tempo para chegar em casa e ver a novela.
Os convivas eram o Eirado, Hugo Rezende, Bento Freire, Sebastião Nery, Rodrigo de Mello Franco, Castelo Branco, Sérgio Peterzone, além de muitos outros. Todos espertos e malandros, no bom sentido.
Eu, já tava-me dizendo ter 30 anos de Lapa, pura invencionice.
Batíamos papo e bebíamos o nosso whisky. O Naval convidado participava de todas. Adorava um bom whisky, Logan de preferência. Lá e naquela ocasião, pude aprender uma nova versão da lei da procura e da oferta na formação do preço. Como economista que sou, tinha estudado o assunto na Faculdade Cândido Mendes (onde minha neta Renata estuda hoje) e também no Conselho Nacional de Economia com o meu inesquecível Professor Eng°. Mário Henrique Simonsen. O Naval chegava com os seus quadros e começava a vendê-los na segunda-feira e seguia com o seu negócio até sexta-feira; o Pardellas fechava aos sábados e domingos. O grupo de espertos combinava, entre si, como um cartel, para conspirar contra os preços do Naval. Até quinta-feira, ninguém comprava quadros do Naval, embora o tratassem com muita amizade. Lá, pelo final da tarde de sexta, o Naval ficava vendo as coisas pretas: nada de faturar, tendo que levar o dinheiro do fim de semana para cobrir a feira e pagar as despesas de casa. Sob essa pressão, baixava os preços dos seus quadros, aceitando ofertas descaradas para não ficar em branco. Desse modo, a curva do seu preço tinha um comportamento especial: começava alto na segunda-feira e atingia o ponto de equilíbrio na sexta-feira às 18h.
A exemplo de outros economistas ilustres, denominei essa curva de - Curva Depressiva dos Preços do Naval ou CDPN.
O TERRAMARES DE QUISSAMÃ
Em 1976, fui contratado pelo Hugo Rezende meu velho conhecido do faroeste do mercado de capitais do auge de 1970, para realizar um projeto de viabilidade financeira de uma cidade turística que ele, titular da Cia.Novo Horizonte, pretendia implantar em Quissamã, Distrito de Macaé, encarregando-me de agenciar os recursos financeiros para financiar aquele projeto. Novamente, reencontro o Naval participando das reuniões in vinum veritas de fim de tarde na Novo Horizonte, promovendo do mesmo modo a venda das suas obras de artes, elogiadas por todos, principalmente aquelas cujos traços representavam movimentos ou personagens: Frevo, Pierrôs, Baianas, Pipoqueiros, etc.
Nessas reuniões havia muitas personagens, principalmente jornalistas, arregimentados pelo Sebastião Nery. Nesse caldo de cultura anti-revolucionária pontificava o Naval com suas obras e suas estórias, submetido a famosa lei CDPN. Foi a partir daí que a nossa parceria teve o seu começo.
Muitos quadros foram adquiridos para presentear aos amigos e clientes da Novo Horizonte, por duas razões principais: as obras eram boas e baratas e, além disso, o Naval concedia crédito para pagar. Nunca deixou de receber, as vezes em vale alimentação. O Naval inventou o vale alimentação !
EXPOSIÇÃO NO PARÁ
O Naval mantinha relações com pessoas e autoridades da cultura do Pará, estado onde nasceu no fim do século passado ou no início deste.
Como disse no princípio, há controvérsias. Em algumas ocasiões nos reunimos na Casa do Pará, no Rio de Janeiro, a pretexto de algum encontro ou evento. Certa feita, contou-me que fora convidado pela esposa do governador da época para fazer uma exposição em Belém, integrando um conjunto de eventos culturais no Pará. Receberia tanto com despesas de viagem e estadia pagas. Deixaria o adiantamento com Da Adeiza para pagamento das despesas semanais e, logo depois, partiu.
Passados alguns meses, estávamos sem notícias do Naval. Tanto tempo fora, então, para nós, tudo estava correndo bem. Embora, no fundo, eu tivesse certa dose de preocupação. Nessa ausência, em certa tarde, surpreendentemente, recebi o telefonema da Da Adeiza, sua esposa, perguntando-me se eu tinha notícias do Alcides, forma como ela carinhosamente o tratava. Disse-lhe que também procurava saber sobre ele, mas faria contatos para localizá-lo.
Poucas vezes tive oportunidade de conversar com Da Adeiza, pois minha parceria com o Naval era recente e, ainda, não envolvia contatos familiares. Ele já me houvera contado, com certo orgulho, que sua esposa tinha sido costureira da Da Maria Teresa Goulart, Primeira-Dama, casada com o então Presidente João Goulart. A contribuição dela para a criação dos filhos Jupa e Jussara, ajudando com os serviços de costura pra fora. Durante aquela conversa telefônica, Da Adeiza aconselhou-me a ter cuidado com o Naval, porque ele enganava a idade. Ficava preocupada com as noitadas e as boêmias, porque o Alcides já tinha mais de 80 anos. E, agora, fora de casa há mais de dois meses sem dar a menor notícia, era preocupante. Da Adeiza partiu em 10/12/83, deixando seus conselhos comigo os quais procurei, na medida do possível, seguilos. O Naval reapareceu poucas semanas depois, muito satisfeito e cheio de novas estórias que ficou contando durante muito tempo. Trouxe algum dinheiro, fez novos amigos e enriqueceu o seu currículo artístíco-profissional. Parece que voltou a Belém outras vezes para cumprir tarefas semelhantes.
GINCANAS
Durante as temporadas de primavera/verão e outono/inverno, são programadas diversas gincanas artísticas no Rio de Janeiro, com pintores e a participação de artistas de todos os estágios, de estudantes a profissionais. Em geral as atividades eram iniciadas às 8h da manhã, encerrando-se às 12h. Imediatamente, logo após, um grupo de julgadores selecionava as melhores obras e as premiava mediante um critério de classificação.
O Naval se inscrevia em quase todas. Qualquer que fosse a gincana, o Naval estava lá. Havia uma, no calçadão de Copacabana, cujo concurso era desenhar a figura na areia. Com vento ou sem vento o Naval fazia sua obra. Lembro de alguns casos interessantes. Programaram uma gincana na Rua da Carioca, num determinado domingo.
O Naval me convidou e eu fui. Apanhei-o no bairro do Riachuelo, onde ele morava numa vila simpática. Chegamos ao local, eram quase 11 h.
La já estavam, desde às 8h, muitos artistas trabalhando. O Naval calmamente escolheu um lugar, montou seu cavalete e instalou a tela. Já eram quase 11h30, sacou seu precioso bastão de pintar, examinou-o e afinou-o com a elegância de um Paganini e partiu para a tela, girando alguns toques magistrais e, em poucos segundos, surgiu um Cristo maravilhoso.
Dá um retoque na coroa de espinho. Se afasta um pouco, olha e pergunta: Que tal? Ainda faltavam 10 minutos para terminar a gincana.
Tirou o 2° lugar. Reclamou, queria o primeiro. Merecia, mas os juízes acharam injusto com os demais concorrentes, que estavam suando desde cedo e o esperto Naval, em apenas alguns minutos, queria o primeiro prêmio. Quem ganhou o primeiro prêmio fui eu, tenho até hoje aquele Cristo vencedor. Depois, fomos comemorar no Mirage, afinal ninguém é de ferro e o chope dá liquidez às palavras.
Em outra ocasião, também numa gincana, o Naval estava pintando um bonde do Rio Antigo, carregado de passageiros. E já considerava seu trabalho terminado, quando um curioso resolve dar um palpite, criticando que nunca vira bonde sem passageiro atrasado correndo atrás para pegá-lo.
O Naval ponderou a observação, retomou o bastão para acrescentar mais passageiros pendurados nos balaustres e diversos retardatários correndo para pegar o bonde. Foi uma salva de palmas! Dessa feita, levou o 1° Prêmio. Mas, por pouco, o curioso deixou de ouvir a famosa advertência: Sapateiro não vá além das botas.
Deixou muitas medalhas que ganhou em concursos e gincanas: ouro, prata, bronze, estatuetas e outras.
BAR MIRAGE
Um dos nossos pontos de encontro era o Bar Mirage. Ficava na Av. Atlântica, esquina da República do Perú, por onde ia e vinha uma multidão de pessoas bonitas, todas personagens do Braguinha que por lá também aportava. Era sempre aos domingos e feriados, a partir do meio-dia, nossa mesa abria os trabalhos com o Gonçalo, nosso garçon favorito, pronto para trazer o primeiro chope e as milhares de saideiras. Nossa mesa era bem frequentada: Lelivaldo de Brito, Dr.Jorge e sua mulata, Norivaldo, Casali, Bento Freire, Prof° Brennand, Roberto Lisboa, Naval, Mulheres, Hugo Nittinger, Da Berta, diversos outros e eu. Em geral os trabalhos eram encerrados lá pelas 16h ou esticados até, estourando, às 18h, quando chegava a turma da noite para nos render.
Nesses encontros as estórias rolavam: sérias, anedotas, futebol, caça e pesca, política, mulheres, fofocas e outras trivialidades. O Naval sempre pontificava de alguma forma. Habitualmente, ele pedia guardanapos de pano ao Gonçalo ou então pratos. Nesse material, fazia seus desenhos e brindava os presentes e seus convidados com figuras de Cristo (a mais comum) ou outras que criava na hora. Tinha a mania de desenhar o rosto das pessoas em suas folhas de desenho, atraindo a atenção do retratado como também de circunstantes. Mas, se por um lado, era bom em figuras e movimentos, deixava muito a desejar com a figura humana. Nunca foi retratista. A retratada ou o retratado ficava compenetrado, alvo do desenho do artista, esperando o resultado. O Naval encerrava com o seu gesto clássico de finalização da obra e, com o seu melhor sorriso, apresentava o que deveria ser o espelho do retratado.
Este, por sua vez, ficava grato, mas geralmente duvidava de que ele fosse a figura do retrato apresentado. Contudo, valia o show. Numa dessas demonstrações artísticas do Naval, ele retratou um convidado da nossa mesa. Tão logo apresentou sua obra-prima, o homenageado ficou mirando a figura por alguns minutos e logo depois começou a chorar.
Ninguém entendeu nada! o Lelivaldo, usando seu espírito de banqueiro baiano, começa a pesquisar e descobre que o convidado identificou no retrato o ectoplasma da sua querida mãe que morrera na Bahia há poucos meses. Daí por diante, entendeu-se que o Naval tinha o dom de retratar o espírito de pessoas, passadas ou futuras, vivendo no seu círculo espiritual. Por isso o retrato necessariamente era diferente da sua fisionomia.
Devia procurar o ectoplasma que estava nele.
Por isso, Gonçalo, traga outra saideira!
PAINEL BAIANO DO CASALI
No grupo do Mirage fazia parte um dos meus poucos e melhores amigos, o advogado baiano José Casali Filho. A época corria por 1976/1978 e o Casali morava solteiramente num apartamento confortável, duplex, na República do Peru, que nós usávamos como centro de reuniões de negócios.
Ele tinha tido sucesso em alguns negócios, de maneira que mantinha adega de vinhos e a despensa elegantemente abastecidas. Tudo gerenciado por uma governanta ranzinza, porém muito boa gente, a Da Inácia.
A Da Inácia era o cão de guarda para proteger o Casali dos amigos e das mulheres, senão nem despensa nem adega bastariam para todos por pouco tempo. Nessa ocasião, o Naval também freqüentava nossas Sabacasalis, desfrutando da adega, da despensa e da cozinha da Da.Inácia. De vêz em quando eu surpreendia o Naval cochichando com o Casali. Fiquei intrigado, procurei saber. O Naval contou-me que estava tentando convencer o Casali a contratar um painel para cobrir a parede do quarto do andar inferior (o apê era duplex), mostrando um esboço com motivos baianos: o Elevador Lacerda, a Estátua tio Mário Cravo, Farol da Barra, Cidade Alta, Mãe Menininha do Gantois e outros. Era coisa grande.
Tamanho 2 x 3m. ou mais ou menos. Depois de ouvir as razões do Naval, resolvi defender sua tese junto ao Casali. Com pouca argumentação, o coração grande do Casali topou a parada.
Parada, ou melhor dizendo, a saga do painel. Contratou o Naval na base de casa, comida, vinho, Dª Inácia, material, vale refeição e um certo fee. Durante 4 meses o Naval trabalhou no painel. Ficou pronto, logo que a adega do Casali ficou vazia e a paciência da Da Inácia bateu firme: "ou ele ou eu!". O painel ficou bonito. É um monumento. Para transportá-lo necessita de uma obra de engenharia. Hoje está imperiosamente emoldurado e aplicado no majestoso apartamento do casal Casali e Cida em Ipanema.
SINTOMAS DE CRISES
O Naval construiu sua família, sua carreira, seus amigos, enfim o seu patrimônio com o comércio da sua arte e uma pequena aposentadoria que recebia do Governo.
Formou um círculo de marchands que comparecia nas horas certas e incertas. Alguns eu apresentei, outros soube da existência porque ele me contou. Tenho notícias de um - acho que é Desembargador - que tinha um acordo com ele: de cada dois quadros comprados, o valor de um seria destinado a Caderneta de Poupança para educar os filhos. E assim foi feito. O José Carlos Rego sabe melhor do que eu essa estória.
Mas, todos nós, sabíamos identificar quando o Naval estava em crise financeira. Era fácil: vinha ele expor os quadros que acabara de pintar, pretendendo vender. Começávamos a examinar e perguntávamos: "ô Naval como é que pode, onde já se viu céu verde?" Ele, de pronto, respondia: "ô malandro, o quê que tu queres, eu só tenho tinta verde !"
Nessas ocasiões, negociávamos adiantamentos para comprar tintas, telas e molduras. Recebíamos o pagamento em quadros prontos. Acabava dando certo, pois não era um negócio, era uma saideira !
A SÉRIE CORUJA
Ao visitar Aninha, uma fornecedora de produtos importados que o Braga - nosso cabeleireiro - nos apresentou, fiquei impressionado com a coleção de corujas que ela exibia nas suas estantes. Gravei no subconsciente a idéia da coruja, como símbolo da sorte, conforme a Aninha me explicara.
Em reuniões posteriores, levantávamos idéias sobre presentes de fim de ano, desejando fugir do lugar comum das agendas e calendários.
Deveria reunir as qualidades de transmitir uma mensagem, ser diferente, duradouro e barato. Nesse período o Naval já entrara na fase dos azulejos, com apoio da Klabin que abriu um atelier para ele nas suas instalações de Del Castilho.
A Cecrisa, sucessora da Klabin Azulejos, manteve o compromisso com o Naval até o fim, mesmo tendo encerrado suas atividades no local.
Em uma certa madrugada, acordo com a idéia de corujas em azulejos.
Telefono para o Naval, era pouco mais de 3h da madrugada, discuto com ele todo o plano e filosofia da obra. Com a condição básica: as corujas do Naval jamais seriam vendidas. Eram amuletos da sorte! E assim foi feito. Daquele momento até hoje, acho que produzimos e distribuímos mais de 500 corujas. Algumas monocolor e outras coloridas, simpáticas, observadoras e bonitas.
Consegui manter uma grande, acho que é a maior que ele fez, montada em 15 azulejos, pintada em duas cores, eterna, instalada ao lado do meu escritório-residência. Na linguagem moderna, é o meu link com ele nos momentos de reflexão, quando pergunto, olhando pra nossa coruja:
E agora Naval?
SAIA CURTA NO ZAIRE
No capítulo Coruja do Naval tenho um derivativo interessante. Antes de encerrar os anos 80, tínhamos relações de negócios com um luso de boa cepa o Josefino Viegas. O Viegas estava de boas relações com o Governo do Zaire (ex-Congo Belga), governado pelo Mobutu. Negociava concessões de exploração de jazidas de diamantes para grupos brasileiros. O representante do Mobutu e sua esposa estavam no Rio, mas o Viegas estava sem condições financeiras de recepcioná-los no domingo, retribuindo a atenção que recebera quando estivera no Zaire. Combinamos que minha esposa coordenaria essa recepção em nosso apartamento da Rua Ministro Viveiros de Castro, como se o próprio Viegas fosse o patrocinador. Correu tudo muito bem, o representante do Mobutu era um negão da maior estatura com sua esposa uma bela, culta e loira francesa. Entre os licores e os charutos, lembramos do brinde que tínhamos separado para o casal: uma bela coruja do Naval.
Quem senão o próprio Naval fora designado para a solenidade de entrega, do brinde-troféu. Estávamos na cobertura, chamamos o Naval com a coruja para a entrega. Entra o Naval, não menos majestoso do que o zairense, envergando seu uniforme de Rei da Nigéria (essa estória vem depois) e oferece com toda a diplomacia africana a inocente e curiosa coruja de azulejo. O brinde foi recebido com frieza glacial e repulsa. Deixada meio de lado pelos agraciados. Investiga daqui, investiga de lá, o Viegas descobre que coruja no Zaire é ave de mau agouro: expulsa forasteiro, mata negócios e outras adversidades. Felizmente, tive notícias que o Viegas fechou negócio com a Andrade Gutierrez no Zaire, apenas esqueceu de devolver a gentileza a D" lolanda.
A SÉRIE BEIJA-FLOR
Com a lembrança da gafe cometida perante o represenante do Zaire e por sugestão do Jabour, o Naval resolveu acrescentar a sua fauna o Beija-FIor. Embora continuássemos com a coruja-símbolo da sorte, lançou a série do Beija-Flor. Ficou linda, mas produziu pouco. Tenho apenas uma na coleção.
Meu contrato com ele era exclusivo para corujas.
O Beija-FIor representa também um símbolo da Maçonaria.
O NAVAL E A MAÇONARIA
Por conviver com inúmeros amigos Maçons, o Naval manifestava uma grande vontade de ingressar na Maçonaria. Ele, por si mesmo, era profundamente místico. Se cursasse essa trajetória, seria um grande líder de uma dessas seitas religiosas africanas. Tinha estatura e porte de um Rei Nagô. Essa parte deixo por conta do José Carlos Rego, discípulo e mestre de Orixás.
Em uma das mais importantes solenidades da Maçonaria - comemoração do Dia do Amigo - fiz uma homenagem ao Naval, apresentando-o na Festa Branca do nosso templo como meu amigo.
O templo estava cheio e a reunião foi solene e muito bonita. Fez um discurso de improviso, agradecendo a homenagem, que orgulha a história da Loja Lealdade. Ganhou mais um diploma que deve estar guardado nos seus documentos. Foi adotado como Grande Irmão hors concours por todos os membros da Loja Lealdade, pois por sua idade estava impedido de se submeter às provas de ingresso na Maçonaria.
Em outra solenidade, por iniciativa do Irmão Jabour, prestou homenagem e foi homenageado, doando uma obra em azulejo, onde apresenta um dos fundamentos da Maçonaria, a figura de um homem se reconstruindo.
Essa obra e outras estão expostas no Salão Cultural do Condomínio Maçônico Mariz e Barros, onde poderão ser vistas por amigos e interessados.
O MARCHAND JABOUR
Nos últimos anos um dos marchands mais queridos do Naval foi o Jabour, cujo depoimento transcrevo como me enviou:
"Plínio,
Os quadros do Naval estão todos na Itaca, inclusive um bem grande no refeitório - Escola de Samba em Azulejos. O Naval recebeu o Diploma de Amigo da Maçonaria e Honra ao Mérito na ocasião do meu veneralato.
Lá retratou o Ser em Formação que está no Palácio Maçônico da Mariz e Barros. Os quadros na verdade não foram comprados, foram trocados.
O Naval não os vendia. Apenas doava de coração os quadros em reconhecimento ao que fazíamos para ele, o que, também, era de coração. (Compras no supermercado, remédios, e, sempre um valezinho quase diariamente para pagar o ônibus, o almoço, etc.).
Até hoje não sei o que era mais vantajoso, comprar os quadros ou manter um crédito em conta corrente interminável. Não podemos esquecer o quanto ele animava em nossas festas, pintando retratos para toda o pessoal.
Quantas saudades do amigo Naval!
O Naval será permanentemente lembrado por onde passou e aqui na Ítaca Ad-Eternum com suas obras exclusivas afixadas por todas as salas, corredores e refeitório.
Um abraço.
Jabour 02/02/99"
Esse testemunho pela qualidade de quem o presta, tem muito valor para mostrar a arte e o desprendimento do Naval.
Outros marchands, como ele chamava, faziam parte da vida do Naval. Alguns foram como tal consagrados por meu intermédio.
O MARCHAND BENTO FREIRE
O Bento Freire, brilhante e inteligente, profissional da polêmica, também fazia parte da turma do Pardellas e de todos os botequins boêmios do Rio de Janeiro. Foi nomeado Marchand pelo Naval. Era um título honorífico - ser marchand do Naval. Desconheço quantos quadros possui, mas são muitos. Espera um dia que se valorizem. É também marchand de muitos outros que conheço. Faz parte do Clube dos Homens com Coração de Ouro. De vez em quando, pingava algum na caderneta de poupança do Naval. Seu point principal era o Lidador. Filosofava permanentemente. Comentava que nós estávamos corrompendo o artista Naval, à base de whisky escocês e caviar, acabaríamos com a inspiração dele. Sua tese é de que a prolificidade do artista está na razão direta da sua miséria e na razão inversa do seu bem estar.
Misturava Isaac Newton com Victor Hugo. Mas acabava, comprando mais um, usando a lei da curva depressiva dos preços do Naval.
Em uma certa ocasião, fui pegar o Naval para que ele me acompanhasse num evento cultural. Já não me lembro qual. Morava em outra vila, também no Riachuelo, porém na Rua 24 de maio, cuja responsabilidade locatícia era do seu filho Jupa. Estava fora, deixei um recado dizendo que o Bento Freire veio vê-lo para comprar 20 quadros dele para uma exposição. Imagino que, quando recebeu o recado, ficou excitado - nem dormiu e deve ter preparado seu plano de trabalho para atender o magistral pedido do Bento Freire, afinal um marchand poderoso e sério. O recado foi deixado no sábado. Soube, pelo Bento Freire, que na segunda-feira, ao chegar no escritório às 10h, lá estava o Naval com um papel grande, fazendo contas. Depois dos habituais cumprimentos, o Bento Freire ficou surpreso com a lista de compras que o Naval apresentava: tanto pra tintas, tanto pra telas, molduras e, naturalmente, um certo adiantamento porque o Naval não é de ferro - né malandro!
O Bento Freire exclamou: Naval o que é que eu tenho com isso?
Até ler esse livro, o Bento não sabia que o autor da brincadeira fui eu.
Mas, pro Naval a coisa deu certo. Naquele dia o Bento Freire comprou dois quadros dele e, logo na semana seguinte, comprei os 20 prometidos, autorizando a Marcia, minha secretária e protetora do Naval, a adiantar os recursos necessários para preparar os quadros.
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